terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

o rico e o mendigo



- Como ousa me pedir mais? Que ridícula audácia é essa a que tem se permitido? Acaso não tem memória ou é mesmo o bom senso que lhe falta? Ora, lave esses olhos ou arranque-os de uma vez. Parecem sem utilidade. Tolo, esqueceu de onde veio? Foi num deserto que te encontrei tal qual um lagarto, sob o pó do chão seco, pisado e sem bem algum. Bem nenhum mesmo, pois que nem a vida parecia lhe valer alguma coisa. Nem a ti nem a qualquer outro. Era um defunto que ainda respirava, sendo lentamente enterrado ao curso de anos numa cova de solidão e apatia, sob os pés e indiferença dos que te viam sem enxergá-lo. Mas eu o enxerguei. O apresentei à minha família que lhe recebeu como igual. Te fiz sentar entre os meus irmãos. Dividiu o prato dos meus filhos. Em suas mãos confiei autoridade e responsabilidades cabíveis, para que ganhasse independência, maturidade e honra. Então agora, como você é capaz de ignorar a tudo isso? Não percebe que a sua atitude beira o deboche? Eu mesmo com minhas mãos te banhei, tratei suas feridas, te vesti e ensinei. Mas você que veio do nada, ainda não se dá por satisfeito. Escolheu não crescer, mesmo sendo educado pelos melhores e tendo sido respeitado por todos. Repete, assombrosa e insuportavelmente, os mesmos erros. E hoje me aparece, mais uma vez, pedindo mais. Mais. Mais o que? O que mais você espera de mim? Já não me desfiz o suficiente daquilo tinha para que você também tivesse? Já não dividi minha vida com você? E veja que nunca lhe pedi nada em troca. Acaso pensa que não sofro com a sua preferência pelo fracasso? Com a sua insistência num comportamento infantil e autovitimado? Como ousa? Como se atreve a voltar a mim? E justo eu. Explique-se.

- É porque no fim das contas, quando erro mais uma vez, você sempre é tudo o que tenho. Me perdoe.

...

- Espere! Não vá ainda. Olhe aqui, ainda posso te ajudar. Sim... eu ainda posso. Tenho como conseguir um novo emprego para você. É uma vaga disponível que estava sendo guardada há algum tempo. Sem dúvida, você se sentirá muito bem lá. E eu mesmo o recomendarei.

- Mas... Pensei que... Por que ainda me ajudaria? Já não lhe ofendi o suficiente? Por que, então...

- É porque o amo. E no fim das contas, quando você errar mais uma vez, e sei que vai errar, eu ainda serei tudo o que você tem.

desmoralize-se




Desmoralize-se!


seja marginal, seja herói




de Hélio Oiticica

sábado, 6 de fevereiro de 2010

sinto muito!




Pessoalmente, nunca falo ‘sinto muito’ nem ofereço meus pêsames. Sequer um ‘I’m sory’ ou um emoticon triste. Apático e sob uma naturalidade inconveniente, acabo por não verbalizar alguns de meus sentimentos frente a situações de muita gravidade. Claro que sinto algum peso quando comunico que alguém ‘morreu’, mas o termo ‘faleceu’ nem me chega aos lábios. Nem perto disso. Eu até fico contrito e gostaria que fosse percebida a minha dor. Não! Não gostaria, não. Eu apenas gostaria que soubessem que me importo e que não ignoro a dor do outro. Acontece que as pessoas geralmente só reconhecem isso frente a uma manifestação oficial, direta e se possível pública. A qual vem, na maior parte das vezes, no ato de dizer: sinto muito. Mas e eu? E eu que não digo? Será que soa grosseiro? Antipático? Puxa vida! Sinto muito!

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

guerra santa




Ele diz que tem, que tem como abrir o portão do céu
ele promete a salvação
ele chuta a imagem da santa, fica louco-pinel
mas não rasga dinheiro, não

Ele diz que faz, que faz tudo isso em nome de Deus
como um Papa na inquisição
nem se lembra do horror da noite de São Bartolomeu
não, não lembra de nada não

Não lembra de nada, é louco
mas não rasga dinheiro
promete a mansão no paraíso
contanto, que você pague primeiro
que você primeiro pague dinheiro
dê sua doação, e entre no céu
levado pelo bom ladrão

Ele pensa que faz do amor sua profissão de fé
só que faz da fé profissão
aliás em matéria de vender paz, amor e axé
ele não está sozinho não

Eu até compreendo os salvadores profissionais
sua feira de ilusões
só que o bom barraqueiro que quer vender seu peixe em paz
deixa o outro vender limões

Um vende limões, o outro
vende o peixe que quer
o nome de Deus pode ser Oxalá
Jeová, Tupã, Jesus, Maomé
Maomé, Jesus, Tupã, Jeová
Oxalá e tantos mais
sons diferentes, sim, para sonhos iguais

(Guerra Santa - Gilberto Gil)