Esqueça a disputa entre cânticos contemporâneos e hinos tradicionais – o problema é: onde está a justiça? - Por Mark Labberton (tradução de Whaner Endo)
Em um culto de louvor que participei, minha atenção dirigiu-se ao entusiasmado líder do louvor. Ele começou o momento com uma oração, pedindo a Deus para nos levar à sua presença. Ainda com seus olhos fechados, enquanto a banda continuava a tocar, ergueu suas mãos e ofereceu sua oração de louvor a Deus.
Foi aí que percebi que, enquanto cantava agitadamente, ele pisava os pés dos músicos que estavam atrás dele. Não apenas uma vez, mas repetidamente durante toda a música. E o pior, sem se desculpar, sem reconhecer o seu “tropeçar no espírito”. Ele estava apenas adorando ao Senhor, enquanto pisava no seu próximo.
Não tenho dúvida de que o líder do louvor estava tão absorvido pela sua própria experiência de adoração que perdera a noção dos demais que estavam à sua volta. E este é exatamente o problema.
Embora nossa paixão aparente por Deus, no final das contas nossa adoração parece ser, em grande parte, adoração a nós mesmos. Não assumimos que podemos adorar de uma forma que, mesmo encontrando Deus, nos distanciamos do nosso próximo. E, na verdade, foi esse padrão de adoração na vida de Israel que trouxe a eles o julgamento do Senhor. Adoração bíblica nos leva ao encontro a Deus, mas também ao próximo.
O que é irônico e, especialmente pertinente, é que muitos debates sobre adoração são apenas formas indiretas de falarmos sobre nós mesmos, não sobre Deus. Nosso debate é se gostamos ou não do estilo do nosso culto de louvor semanal. É uma adoração de consumo, em vez de uma adoração de oferta. É uma expressão do gosto humano e, não reflete mais a glória de Deus.
Se adoramos Jesus Cristo, então temos de viver como Jesus. De fato, Jesus disse em Mateus 25.31-46 que nosso louvor será medido de acordo com o que vivemos.
O epicentro da guerra sobre adoração é esse: nossa prática de adoração está separada do nosso chamado à justiça e, o pior, promove as tendências à auto-indulgência da nossa cultura, em vez de nutrir uma vida de auto-sacrifícios em prol do Reino de Deus.
Paralizados nos bancos das igrejas
Eu não me excluo dessa crítica, nem por um momento. E nem a congregação à qual faço parte. Muitos de nós estamos simplesmente ocupados demais com nosso dia-a-dia. A não ser as grandes manchetes, poucos problemas mundiais calam em nossos corações. E, quando prestamos atenção, normalmente experimentamos uma avalanche de notícias sobre um interminável senso de necessidade e desespero vindo de lugares como Timor Leste, Darfur, Baixo-Saara, Bangladesh, Haiti.
Admitimos que pessoas estão sofrendo no mundo. Mas, concluímos que o sofrimento “daquelas pessoas” não tem nada a ver com a gente; que morrer de fome nos campos de refugiados no Sudão é diferente do sofrimento das pessoas sem teto que encontramos no caminho para o nosso trabalho; que aquilo está além da nossa possibilidade de resposta ao sofrimento mundial.
Parte dessa doença é este trágico raciocínio: em face das necessidades mundiais, se não podemos fazer tudo, então não podemos fazer nada. Ficamos paralisados, inertes.
Enquanto isto, nosso mundo sofrido espera por um sinal de Deus na terra, “com grande expectativa que os filhos de Deus sejam revelados” (Rom. 8.19). O plano de Deus é que nós, a igreja, sejamos a evidência primeira da presença de Deus. Todo continente precisa de sinais concretos disto. Estatísticas surpreendentes sobre grilagem de terras e escravidão, má nutrição e fome, AIDS e prisões injustas são abundantes. Um abismo enorme entre a realidade atual do mundo e as preocupações da maioria dos cristãos na América do Norte.
O chamado de Jesus para “ir e fazer discípulos” deve ser realizado num mundo como este. As boas novas que transforma vidas é o amor salvador de Deus em Jesus Cristo, que deseja transformar cada pessoa e cada coisa (inclusive toda forma de injustiça e opressão) em algo novo. Esta é a nossa esperança e comissionamento.
A verdadeira crise na adoração é essa: será que as pessoas adorarão a Deus de uma forma que demonstrarão que estamos acordados? Adorando seu próximo em nome de Deus? Iremos adorar o Deus vivo enquanto ele nos pede “que façamos o que é direito, que amemos uns aos outros com dedicação e vivamos em humilde obediência ao nosso Deus”?
Líderes de adoração talvez queiram focar apenas no que parece culturalmente e socialmente urgente. Mas, se fomos criados para adorar o Senhor de toda criação, o Salvador do mundo, então enquanto estamos checando o som ou refletindo em orações ou sermões, temos de permanecer firmes numa visão mais ampla do amor de Deus.
O mundo na nossa adoração
Por muitos anos, recebo a cada domingo pela manhã um e-mail de missionários parceiros que apoiamos. Este casal e suas três filhas pequenas estavam vivendo e servindo junto às crianças em risco no Camboja. Um dos únicos emails que eu lia antes do culto era o seu relatório semanal. Eu lia como uma disciplina espiritual, como um pedacinho de misericórdia e verdade, como um lembrete e um chamado.
Eu precisava liderar nosso culto de adoração em Berkeley com meu coração renovadamente tocado pela realidade do sofrimento do mundo, da urgência em ouvir e viver a esperança do Evangelho, e o alegre e custoso chamado para uma vida de sacrifício em nome de Jesus.
A cada domingo eu desejo servir às pessoas nos primeiros bancos das igrejas e levá-los à transformadora presença do Senhor. O problema é: mas qual critério usar?
As escrituras indicam que a resposta é: aqueles que se sentem abençoados pela adoração vivem vidas transformadas. A evidência não é apenas os comentários logo após o término do culto, mas se as pessoas estão realmente dando suas vidas pelos pobres e oprimidos de forma tangível.
Num desses domingos, eu preguei sobre o Salmo 27, um salmo maravilhoso que descreve claramente o que é ter medo e encontrar o conforto de Deus. Tenho certeza que o sermão foi, pelo menos um “bom sermão”, talvez um “grande sermão”. Durante aquela semana eu fui a um jantar promovido pela International Justice Mission, uma organização cristã que busca justiça para pessoas que estão enfrentando várias formas de opressão.
Elisabeth, uma bela jovem de 17 anos do sudeste da Ásia, falou à noite. Ela cresceu num lar cristão, memorizando versículos bíblicos, que se tornaram mais vivos durante os anos em que ela ficou seqüestrada, forçada a prostituir-se, escravizada em um miserável bordel. Enquanto ela falava, projetava imagens do seu quarto naquele bordel. Sobre a cama, onde ela era brutalmente maltratada, dia após dia, ela havia escrito estas palavras na parede: “O SENHOR Deus é a minha luz e a minha salvação; de quem terei medo? O SENHOR me livra de todo perigo; não ficarei com medo de ninguém. Quando os maus, os meus inimigos, me atacam e procuram me matar, são eles que tropeçam e caem”. São os versículos iniciais do Salmo 27.
Relembrei o domingo anterior e o meu sermão sobre o mesmo salmo, lembrei dos medos que eu listara para as pessoas na minha igreja. Eram medos reais e legítimos, mas nenhum deles era tão enfático como os que Elisabeth enfrentara. Eu tinha como que uma imagem de um filme mudo na minha mente, ouvindo Elisabeth, enquanto visualizava um encontro de adoração da minha comunidade, em um domingo qualquer. Enquanto estávamos ocupados tentando estacionar nossos carros em Berkeley naquela manhã, uma tarefa “tão horrível” (como uma pessoa me disse recentemente), Elisabeth estava indo adorar do seu jeito. Ela achegava-se a Deus no seu quarto sem janelas, naquele bordel. E nós, na nossa igreja cheia de vitrais...
Se nós enxergássemos a história de Elizabeth através das lentes da narrativa bíblica, perceberíamos que amar a Deus nos impulsionaria a amar Elizabeth. Não porque sua história nos provoca sentimento de compaixão, mas porque sua vida e circunstâncias reivindicam aqueles que adoram Jesus Cristo.
Adoração como se o mundo dependesse disso
Verdadeiros adoradores aclaram o propósito de Deus e nossa parte nisso. Falsos adoradores, que podem ser encontrados facilmente tanto entre o povo de Deus quanto em qualquer outro lugar, nos levam a uma missão totalmente distorcida.
Tome-se como exemplo o poder, por exemplo. Poder é um das mais profundas bênçãos de Deus e, portanto um dos principais alvos dos falsos adoradores; ou seja, tomam o poder e mal utilizam-no para outras coisas, além de honrar o Senhor e sua criação. O sofrimento de Elizabeth, e muito do nosso próprio sofrimento, tem a ver com o abuso de poder. Adoradores fiéis ajudam-nos a aclarar e limitar o poder humano em nossas mentes e corações. Falsos adoradores nunca fazem isso. Falsos adoradores determinam a injustiça, uma distorção ou aberração do poder. Adoradores fiéis perguntam se estamos vendo e vivendo a realidade de Deus ou a ficção criada pelas nossas próprias vidas decaídas. Quando nós ou qualquer outra pessoa além de Deus assume o papel principal, a vida nos “chicoteia” para fora da direção.
Os efeitos da falsa adoração distorcem nosso senso de Deus, levando-nos a injustiças e sofrimento, orgulho e prepotência. Os prejuízos continuam implacavelmente. Não é a toa que Deus se enfureceu com Israel, ou com a Igreja, quando essa distorção foi perpetuada exatamente pelas pessoas que Ele tomou para si. Essa é a mensagem ardente de Isaías, Jeremias e Amós. Esta é o front da Guerra da Adoração que realmente interessa ao Senhor. A quem devemos temer?
Outra distorção que a falsa adoração promove é essa: perdemos a noção do desejo que o Senhor tem em nos fazer testemunhas do seu amor e justiça. Deus quer que dos verdadeiros adoradores fluam vidas que sejam evidências, nesse mundo, do seu caráter justo e íntegro. A falsa adoração, em vez disso, leva à falsa representação: podemos falar no nome de Senhor, mas falhamos em mostrar a Sua vida. O profeta Isaías disse que, quando o povo de Deus faz isso, mentimos sobre o Deus que representamos (Isaías 5.20-23; 29.13-16).
Deus quer que os descendentes de Abraão sejam abençoados e abençoadores. O relacionamento que tinham com Deus era tanto para seu bem quanto para o bem daqueles que, através deles (e de nós, também) “sentiam e viam que o Senhor é bom”. O mundo deve ver e saber das coisas de Deus através das vidas e ações dos verdadeiros adoradores.
Adoração que rearranja
Em uma viagem à Índia, conversei com um pastor sobre hábitos de leitura. Ele me disse: “se eu economizar por quatro meses, poderei comprar um livro cristão com o desconto que me dão. Nunca viajei para fora da Índia, mas já ouvi que nos Estados Unidos, algumas vezes compram livros e não os lêem”. E me perguntou com espanto: “Isso é verdade?” Murmurei alguma coisa para encobrir, enquanto eu pensava nos livros que existiam nas minhas prateleiras.
Nossa preocupação não é saber se compramos livros e não os lemos, mas quantos compramos. Se vacinamos nossas crianças ou não, mas se podemos acompanhar o processo para comprová-lo nas escolas dos nossos filhos. Não é se nos alimentamos ou não, mas o quanto comemos além do que precisamos ou até mesmo queremos. Não é se temos cama, mas qual a cor do lençol. Se teremos a possibilidade de ouvir sobre o amor de Deus em Jesus Cristo, mas qual ministério, igreja ou meio de comunicação eu mais gosto. Algumas pessoas, no nosso País, não têm a possibilidade de fazer essas escolhas (um escândalo, por si só). Mas, a maioria das pessoas nos Estados Unidos, tem. Enquanto isso, milhões de pessoas do sudoeste asiático e outros países pobres não poderão, nunca, tomar as suas próprias decisões.
Essa disparidade econômica e suas injustiças são questões para a adoração. De acordo com as escrituras, a principal forma de mostrarmos ou distingüirmos a verdadeira adoração da falsa adoração tem a ver com como respondemos aos pobres, oprimidos, negligenciados e esquecidos. E hoje não vejo esse tema borbulhando nas águas da adoração na Igreja americana. Mas justiça e misericórdia não são assessórios da adoração e, nem conseqüência do louvor. Justiça e misericórdia são intrínsecos a Deus e, portanto intrínsecos à adoração a Deus.Nossa adoração deve nos levar a uma maior misericórdia, a profundos atos de justiça, por aqueles que são os últimos da lista, os últimos a serem lembrados e os últimos a serem desejados.
A vigorosa adoração bíblica deve parar ou ao menos redirecionar nosso consumismo sem fim, de forma a fazer que nossas livres e fiéis escolhas sejam “gastar menos” para assim podermos “dar mais”. A reputação da nossa comunidade, como as escrituras sugerem, deveria ser a de compromisso com aqueles que perseguem a justiça, com os oprimidos, pois isso é o que significa sermos o Corpo de Cristo na terra. Não deveríamos nos enganar, pensando que isso é suficiente para nos levar ao coração de Deus, sem que nossas vidas mostrem ao mundo o coração desse Deus.
Trecho do livro “The Dangerous Act of Worship - Living God's Call to Justice” que será publicado no Brasil pela W4 Editora.